Há muitos anos atrás estava eu numa escola onde trabalhava quando nos pediram para que as aulas fossem interrompidas durante uma hora a fim de que os estudantes tivesem disponibilidade para assistir a uma conferência - promovida por já não me lembro que organização financiada pelo Estado - dedicada ao "combate à droga". Chovia. Já tinha lido o jornal (nesse tempo lia muitos jornais). A internet não existia. Fui assistir.
O orador era um juiz desembargador cujo nome, infelizmente, também esqueci. Fiquei com a ideia de que fosse um bom homem. Nada na sua indumentária apontava para o gosto pelo luxo. Nada no seu discurso apontou para estarmos perante um polícia ou um inquisidor frustrado. Falou dos flagelos sociais. Das prisões que disse conhecer bem (esperemos que por fora). Da dependência. E no fim, fez um apelo. "O que nós temos a dizer é muito importante", disse, e a voz soou mais forte "Jovem! Não te drogues! Experimenta antes passear na montanha!".
Uma das razões por que gosto mais dos livros do que da vida é poder reler as coisas que não percebi bem. Na vida não podemos voltar atrás nem cinco minutos. De modo que fiquei a pensar se teria adormecido por instantes e perdido alguma coisa essencial. As dezenas de adolescentes presentes tinham um ar constrangido.
A droga é um dos maiores negócios do planeta. Se o dinheiro que movimenta se evaporasse por magia instantaneamente, o mundo demoraria umas horas a entrar numa catástrofe económica sem precedentes. Tem, sobre outros negócios, a vantagem de não ser regulado. É dos poucos que funciona, quase perfeitamente, em obediência às regras de "mercado". Pensei, com alguma apreensão, em que medida o Desembargador tinha capacidade para a ele se opor. Pensei que não me competia julgar um homem (que me parecera bom) mas uma política. Pensei, com mais apreensão, em que medida poderia um governo como o português opor-se ao capitalismo sem regras. Procurei alguns números, e os que encontrei assustaram-me. De quanto dinheiro falamos quando falamos dos senhores da droga. Pensei que expor o negócio poderia ser mais eficaz do que apelar às montanhas. Li os argumentos económicos dos defensores da regulamentação da droga (ou seja, dos que defendem que todos ganharíamos se os donos das empresas da droga fossem, como por exemplo os banqueiros, submetidos às regras pensadas para as empresas). Falei com alguns polícias que têm a seu cargo esse sector.
Aquilo que me disseram tem, pareceu-me, uma consequência engraçada. Para o empresário da droga é preferível manter-se à margem do sistema legal. Não é, como algumas pessoas com quem tentei discutir isto me disseram, porque assim "não pagam impostos". Pagam-nos indirectamente, e chamamos a isso "branqueamento de capitais". Embora as empresas em si permaneçam no limbo da "não-legalidade", os lucros por ela distribuídos aos sócios dão entrada, diariamente, nos circuitos "clean" de dinheiro, mediante o pagamento de um elevadíssimo preço. A vantagem dos empresários da droga é não estarem submetidos às regras de regulação da concorrência, de regulação da relações com trabalhadores, de regulação das relações com os credores. O "dealer" de esquina não desconta para a Segurança Social nem tem direito à greve. O credor (quer o consumidor final quer o fornecedor de matérias-primas ou de serviços) não tem acesso a tribunais. O concorrente não tem como se queixar de "práticas ilícitas".
A questão é saber até que ponto vai o grau de racionalidade económica dos empresários da droga. Admitindo - à falta de dados concretos, limito-me a presumir - uma correlação entre a capacidade de actuar racionalmente e o volume de capitais disponíveis (para dar um exemplo, um empresário rico pode contratar bons gestores e conselheiros), seria importante saber se neste negócio há, ou não, uma tendência para aquilo a que os economistas chamam uma "concentração vertical". No fundo, há dois cenários possíveis: no primeiro, a droga é, desde os campos da América do Sul e da Ásia até às esquinas das grandes cidades do Ocidente, sucessivamente vendida e revendida (com elevadas margens de lucro para cada intermediário). No segundo, a mesma organização assegura a produção das matérias-primas, a fase da manufactura, o transporte e a venda (a grosso ou a retalho). Em mercados não regulados, dizem-me alguns economistas, a acumulação de riqueza dá-se, essencialmente, quando se verifique o segundo cenário. Ou seja, se as empresas da droga se tiverem organizado segundo o modelo das grandes multinacionais do séc. XX, os seus donos terão, sem dúvida, algumas das maiores fortunas privadas do mundo.
A questão seguinte é a de saber se, nesse caso, estão eles dispostos a usar os seus recursos financeiros para assegurar a manutenção da fonte da sua riqueza, ou seja, a manutenção do mercado em que operam à margem da regulação legal. Mais brutamente, se estão ou não a persuadir os Estados a manter a proibição da droga.
A passagem de um raciocínio deste género para as conspiration theories de que fala a zazie nos comentários aos posts anteriores é uma linha muito ténue. Eu diria que devemos ser racionalmente paranóicos, e que esse é, no essencial, o método de raciocínio que permite progredir no conhecimento. O exemplo mais simples é o do detective dos romances policiais que considera todos como suspeitos, mas nenhum como culpado enquanto não houver provas firmes da autoria do crime. Tem de recusar a tentação de acreditar numa culpa e a tentação de acreditar numa inocência. Tem de esquecer as suas próprias crenças, ou melhor, de submeter permanentemente as suas próprias (e inevitáveis) crenças, simpatias e desgostos ao teste frio dos factos que, possivelmente, as desmintam. Tem, no limite, de se alegrar se descobrir que seguiu uma falsa pista: cada refutação da teoria que admitia como certa conduz à aproximação ao resultado final.
E volto ao meu bondoso juiz, para poder um dia destes voltar aos Condoleezza Blues, e a outras coisas mais interessantes. Talvez os empresários da droga não durmam com medo de que milhares de oradores convençam um dia milhões de jovens a encher as montanhas em vez de se drogarem; talvez o homem fosse um malicioso agente de sinistros milionários, pago a peso de ouro para meter a ridículo a vida saudável. Talvez nem uma coisa nem outra. Não é daí que vem a maré negra. A maré negra vem de não sabermos pensar. E eu, que sou paranóico, ponho a hipótese de alguém ganhar em que nós não pensemos.