Friday, February 24, 2006

Rever-me em Reverte: quinze metros de liberdade

De Arturo Perez-Reverte, excertos da entrevista hoje publicada no Independente (questões de José Eduardo Fialho Gouveia).

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Como reagiu ao 11 de Março?

Senti que o século XXI começava de forma lógica. O 11 de Março foi lógico, o problema é que o Ocidente não o entendeu como tal. Temos de perceber que vivemos num mundo perigoso e hostil, não só pelas questões islâmicas. O conforto e a comodidade conquistados no pós-guerra estão a acabar. Noutros locais há muita gente desesperada e com fome, mas têm coragem. No Ocidente não existe nem fome, nem fé, nem desespero, nem audácia. E os nossos ministros, que nada sabem de História, não têm noção de que a humanidade já passou por momentos semelhantes, como na época de Constantinopla ou de Roma. Os impérios têm os seus momentos de expansão, de auge e de queda. O Ocidente está em decadência. Isso é evidente. Mas é bom que assim seja para nos estimular e permitir a renovação. É natural que - tendo m conta esta Europa que esqueceu três mil anos de cultura, que está caduca, acabada, sem vontade de lutar, cheia de ministros contemporizadores que tentam agradar a todos e de cidadãos que querem apenas o conforto - cheguem os novos bárbaros. Eles vão ganhar. Sáo jovens e nós estamos velhos.

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O seu último livro [...] afirma que se trata sobretudo da "desolação que se sente ao descobrir que o caos governa o mundo". O caos move-se de forma organizada?

Claro. O caos tem regras. Acreditamos que o terramoto de Lisboa, o desastre do Titanic, o 11 de Setembro, a guerra de Sarajevo ou o vírus da sida são apenas azares. Não é verdade. Existem regras cósmicas no universo. Quando o homem as viola e transgride é obrigado a pagar a factura. Por que razão Lisboa foi arrasada em 1755? Por que motivo o homem decidiu edificar cidades em zonas sísmicas? Sempre houve tsunamis, mas antes não se construía hotéis em cima das praias. [...]

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... tenho um prazer...

Mórbido?

Não. Tenho um prazer intelectual ao confirmar que a História segue uma pauta que se repete. Quem a conhece pode sobreviver e lidar melhor com a realidade [...]

Digo mórbido porque, enquanto desfruta do seu "prazer intelectual" morrem inocentes que iam a passar no momento em que explodiu um carro armadilhado.

Ninguém é inocente. Aquele que faz um navio embater num iceberg porque vai demasiado depressa não é inocente, é estúpido. Quem vai passar as férias para um hotel construído em cima da praia numa zona onde há tsunamis não é inocente, é estúpido. Quem edifica cidades como São Francisco ou Lisboa em zonas sísmicas não é inocente. Quem morre nas Torres Gémeas porque trabalha num edifício que apenas aguenta o fogo durante três horas mas leva cinco a ser evacuado não é inocente, é irresponsável. Inocentes são as crianças, os cães, os pássaros, os deficientes mentais. Aqueles que podem ler, estudar, consultar a internet e voltam a cometer os mesmos erros não são inocentes, são idiotas. É preciso pôr os nomes às coisas.

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Passei vinte anos a fazer reportagens de guerra e posso afirmar que por vezes nem sequer as crianças são inocentes. Essas linhas morais que o Ocidente traça com tanta facilidade assombram-me.

Mas ningém escolhe nascer num local...

É preciso entender que nem sempre há soluções para tudo. [...] O ser humano está destinado a viver num mundo perigoso, hostil, complicado e injusto. Devemos assumir tudo isso como parte do mundo e da natureza humana. Não podemos dizer que nunca nos avisaram, que não sabíamos que Hitler ia chacinar judeus, que não tínhamos consciência de que íamos matar pretos ao fazer de Angola uma colónia ou que foi uma surpresa Franco prender tanta gente. Se desconhecíamos tudo isso então somos culpados. [...]

Vale a pena lutar para mudar o estado das coisas?

Claro que sim. É aí que está a graça. O ser humano vive com uma pistola apontada à cabeça. O Universo aponta-nos essa pistola e faz-nos prisioneiros. Restam duas opções: esperar pelo tiro ou tentar ser livre, correr, escapar. Enquanto corremos somos livres. Seremos mortos de qualquer forma, mas temos quinze metros de liberdade. Durante esses quinze metros podemos ser valentes, dignos, decentes, honestos, amar, ser solidários. É isso que distingue os homens. Há aqueles que escolhem correr esses quinze metros e aqueles que não. [...]"

Wednesday, February 15, 2006

O Profeta, o Arcanjo, o Urinol e a namorada dela (II)

No fundo no fundo é sempre o mesmo. Para recapitular:

- Contra a ideia milenar de que a Arte é a expressão visível da Beleza ergueu-se, como um martelo, o famigerado urinol de Duchamp: e assim agora se diz, tranquilamente (ando a tentar reencontrar um texto fabuloso sobre isso que li há tempos na net e de que não guardei o rasto) que já não se pode, filosofica e esteticamente, considerar a beleza como superior à fealdade (o texto era uma apologia da Paula Rêgo);

- Contra a ideia burguêsmente moderna de que nas coisas modernas não se toca levantou-se, como um urinol, o patusco martelo do Pinoncelii: e a civilização que (Barroso dixit) considera sagrado o princípio da liberdade de expressão rapidamente explicou ao senhor com nome de personagem de opera-bufa que os princípios sagrados são (como os cristãos já aprenderam) apenas para ser vividos no íntimo dos corações.

Foi disto que falei no meio-post que aqui ficou. É o mundo que temos, mas o mundo que temos é o mundo dos falsos profetas e dos arcanjos fora do lugar. Por isso mesmo é um mundo que se tornou inaceitável, e é um mundo em que o urinol se não pode manter à custa da namorada dela. E vou agora mudar de tom, a ver se me faço entender.

Essa é a Danaide, de Auguste Rodin, e nasceu (não consigo dizer foi esculpida) em 1885. Juntamente com a obra que antes reproduzi, é bem o rosto daquilo que fizemos de nós ao fazer o mundo. Vivemos sob o signo de Janus, o deus da dupla face. E se o urinol metafísico de Duchamp anuncia bem - no seu orgulho de derrubador de ídolos - o orgulhoso mundo que temos, a jovem mítica de Rodin é toda ela - na sua pureza frágil de coisa derrubada - o retrato do frágil mundo que somos. Gritam alto os urinóis modernos, sim. Calam mais fundo os ombros vencidos da Danaide.

Parece uma estátua grega, não é? Ou uma beleza romana, ou uma virgem pagã... uma coisa sem tempo. Pois é. Só que... é bem de todos os tempos o gesto quieto da Danaide, mas são modernos, tão modernos, os olhos ocidentais que a souberam ver.

Somos (e tanto nos vai custando) os primeiros a olhar o outro sabendo que quando sofres és igual a mim. Mistério da Cruz, dirão alguns, Marianne, dirão outros. E talvez tenham ambos razão. Mas somos os primeiros a ouvir as histórias que nos contam do ponto de vista das vítimas, e não do ponto de vista dos heróis. A rezar pelos fracos, que não têm história que por eles reze. A fazer coisas tão pequenas como gostar das crianças pequenas.

A orgulhosa Família patriarcal foi, sem dúvida, sustentáculo e base das sociedades. E ainda é. Como o foram a educação guerreira, o primado da fé sobre a razão, o jogo mortal da honra e da vergonha, as ideias tão nobres de sacrifício e de serviço, de pátria e de silêncio, de raça, de herança e de história. Quebrem as obras de arte que a elas se devem ou que por elas se fizeram e a arte da Europa será um montão de ruínas, cem anos de solidão (o séc. XIX) e o estranho exército moderno dos urinóis metafísicos. Sim, a Família tem a mais ampla função social, e as coisas estão todas no seu lugar quando o Pai chega a casa ao fim do dia e pousa um beijo sincero na fronte pura da Mãe, no rancho gracioso dos filhos. Que terá acontecido à Danaide para que as coisas tenham corrido mal?

(não posso contar aqui a sua história, talvez um dia o faça na Ribeira. É uma das mais estranhas histórias gregas, e é comprida demais. Mas sim, há Famílias e Pais e Guerreiros e Casamentos e honra e raça e herança. Tantas coisas, tantos gritos. O silêncio dos braços dela.)

Sim, só sabem ver a Danaide olhos danados que não queiram mais ver coisas grandiosas, ainda que venham pela voz dos Profetas do orgulho ou dos Arcanjos da razão. Só aqueles para quem diante do amor, todo o mundo ajoelha em espanto (frase tão grande do filme tão frágil que foi The Village). Só aqueles que finalmente começam a suspeitar que existem, que não são apenas uma assinatura a tinta num urinol de fábrica. Não sei se são doentes, se são os mais fracos, os mais frágeis, os vencidos, os sem-lugar ou os sem-razão. Não sei que martelos os fizeram assim, que erros. Não preciso de saber.

E talvez possa agora voltar ao princípio.

Nem todos os deuses são o meu deus. Nem todos os outros cabem na família que para mim quero. E sim, tenho direito a dizer o que penso, a caricaturar, a ser heterosexual e a passar pela Danaide como se fosse mais um nome do nada. Tenho tantas coisas. E tantas coisas me têm e me retêm a mim. Há iscos, e ismos, e clubes, e profetas, e guardas, e juízes, e leis. Todo o mundo é a grande mostra de artes de 1917, e cada um de nós está sentado no juri. Não sei que arcanjo nos fez assim. Mas há Danaides a aguardar, e aguardarão até ao dia em que soubermos que fomos todos nós que a derrubámos, todos nós que nela guardamos o amor inteiro. É terrível e é ilógico e assim não vamos a lado nenhum e deu-nos tanto trabalho erguer isto tudo, tanto sangue de egrégios avós. Se calhar não vamos ganhar o prémio da mostra de artes. Mas não há acordo possível entre os profetas e as caricaturas, entre a função social da família e o amor que não distingue sexos, entre o urinol metafísico da igualdade de valores e a Danaide que grita a verdade do silêncio frágil. Não há acordo possível entre a paz e a guerra.

E por isso eu quero que as portas se abram, fechá-las sempre foi fácil. Quero que os valores sejam diferentes uns dos outros, para que as pessoas possam ser finalmente iguais. Quero viver num lugar onde não seja preciso ter papéis em ordem nem papás em ordem. Em que o amor não tenha a forma rígida da sociedade, para que a sociedade possa encontrar a forma frágil do amor. Em que não haja gente de segunda e deuses de segunda, mesmo que vigiados por guardas e caricaturistas de primeira. Não quero que os muçulmanos sejam iguais a mim, que a Lena e a Teresa sejam iguais a mim: quero eu ser igual a eles todos. Não quero que o urinol assente nos ombros da danaide vencida.

Por estranho que pareça aos modernos, nós os homens-homens não precisamos de um urinol. Tirem-nos das escolas, fazem mais estragos que os crucifixos. E é evidente que nós Ocidentais temos direito a caricaturar. Mas já agora era bom que deixássemos de ser uma caricatura.

Sunday, February 12, 2006

O Profeta, o Arcanjo, o Urinol e a namorada dela (I)

Não sei fazer links para artigos de jornais, nem sei se ele está disponível. De modo que vou só resumir a história. Leiam, se puderem, a crónica de José Eduardo Agualusa na Pública de hoje.



Em 1917, o incontornável Marcel Duchamp (finalmente alguém a quem se aplica bem esta detestável palavra) comprou o objecto que aqui reproduzo, escreveu a tinta o nome que se pode ver (não era o dele) e inscreveu o resultado - com o nome usado a escrever - numa mostra de artes de que ele próprio integrava o juri. Para o bem e para o mal, nasceu nesse dia o mundo em que hoje nós, os pós-ocidentais, vivemos. E parece que essa obra de arte - eu ignorava-o até hoje - está disponível para os nossos olhos ávidos em oito versões originais.

Em Janeiro deste ano, um senhor chamado Pinoncelli, artista plástico, de 77 anos, terá sido condenado por um tribunal francês a pagar 214.000 euros ao Centro Pompidou de Paris por ter desferido umas fortes pancadas de martelo num dos tais oito exemplares únicos. O senhor Pinoncelii proclamou, em vão, que o seu objectivo era superior, porque era artístico: discípulo do mestre Duchamp, quis manter a tradição dele colocando tudo radicalmente em causa. E o que os estupefactos guardas do museu tinham diante dos olhos não era um urinol vandalizado (que aliás abundam) mas uma nova e única e inexprimível obra de arte: talvez o "urinol do professor Marcel fragmentado como o mundo", de Pinoncelli (por mim, proporia "pénis desiludido III"). E pelo contrário, os juizes zelosos que pretendessem salvaguardar a arte tal qual estava estariam, eles sim, a ofender os próprios princípios do Mestre.

Aprendi há muito que não há coincidências, e acho admirável que isto tenha acontecido - e que Agualusa o tenha contado, e que eu tenha, contra os meus hábitos, comprado o jornal - no momento em que o mundo discute cartoons e profetas e liberdades de expressão, e que Portugal tenha aproveitado esse facto para que o tema do significado legal do casamento (e das raparigas que tentam o improvável reconhecimento do seu direito) tenha sido relegado para o quarto de hora das glórias passadas. Talvez eu ande desfasado.

Como explicar que, nos três casos, é (também) o mesmo que está em causa? Talvez começando pelo princípio.

Uma das coisas mais difíceis de explicar a um ateu é que, para os seguidores de algumas religiões (entre elas as cristãs e a muçulmana), deus existe como algo mais que um "conceito filosófico", e que as pessoas não morrem quando morrem (pois que apenas morre o seu corpo, que não é elas). De modo que a "blasfémia" não é um ataque a uma opinião, mas o ataque a uma pessoa (deus ele mesmo, para simplificar). É claro que a moderna lei ocidental considera como pessoas apenas os seres humanos, e mesmo assim com restrições (é preciso que tenham nascido). E que nenhuns direitos são reconhecidos a deus. Do ponto de vista racional, é uma opção sensata: na verdade, se reconhecêssemos direitos a deus, logicamente nenhuns direitos poderíamos reconhecer aos seres humanos. Todas as coisas são dele. Mas é dificil que um crente deixe de ter a sensação que a lei, a partir daí, se tornou um sistema incompleto. Com isto quero apenas chamar a atenção para o facto de a solução laica "toda a religião só no teu íntimo" apenas é compatível com a ideia de um deus que seja não mais que isso mesmo. Uma ideia, ainda que muito bonita. Os "católicos", na sua grande maioria, estão aliás já em grande parte persuadidos disso mesmo. Para um muçulmano educado numa sociedade tradicional (ou para um cristão de há duas ou três gerações atrás), um cartoon é igual a um martelo no urinol, e não a um insulto ao artista que o concebeu. É esse o drama que se esconde por trás da trágica história de como se cozinha uma guerra.

Na semana passada, encontrei nos blogs dos meus amigos católicos (a verdade é que evito visitar a maior parte dos blogs católicos - e em rigor também a maior parte dos que o não são) acesas discussões sobre a "aceitabilidade" do casamento como o que a Lena e a Teresa (detesto esta intimidade com pessoas que não conheço) pretendem. Gostei muito de ver algumas opiniões ("não consigo descobrir em que é que a minha história de amor é diferente", foi dito no Jardim de Luz) e reagi mal a certos comentários. Com estes, ficou absolutamente claro que, para alguns, deus mandou que apenas o homem e a mulher se "unissem", e o Arcanjo que expulsou os nossos pais do paraíso anseia por voltar a desembainhar a espada, esse símbolo fálico. E pronto. O problema está na blasfémia, e o martelo da luxúria ameaça o urinol divino. Para outros (ah, para tantos outros, e aqui a palavra "outros" é masculina mesmo), a ideia de os outros serem homosexuais remete para o mundo sombrio do urinol de uma forma, digamos, bastante mais física. É trágica a fragilidade dos "homens".

Oops. Isto vai tão longo. A ver se continuo depois.

Saturday, February 04, 2006

Ponto. Parágrafo.

Há um tempo, sim. Há um tempo para olhar, um tempo para enfrentar a maré negra. Isto era para ser um contraponto à Ribeira, o meu outro blog que é onde sou mesmo. Depois as coisas não correram bem. Mas aqui não importa o que sou, importa o que o mundo não é, o que não é este país à minha volta parado.

Maré negra. Que eu possa ter para ti o olhar nocturno do falcão.