Rever-me em Reverte: quinze metros de liberdade
De Arturo Perez-Reverte, excertos da entrevista hoje publicada no Independente (questões de José Eduardo Fialho Gouveia).
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Como reagiu ao 11 de Março?
Senti que o século XXI começava de forma lógica. O 11 de Março foi lógico, o problema é que o Ocidente não o entendeu como tal. Temos de perceber que vivemos num mundo perigoso e hostil, não só pelas questões islâmicas. O conforto e a comodidade conquistados no pós-guerra estão a acabar. Noutros locais há muita gente desesperada e com fome, mas têm coragem. No Ocidente não existe nem fome, nem fé, nem desespero, nem audácia. E os nossos ministros, que nada sabem de História, não têm noção de que a humanidade já passou por momentos semelhantes, como na época de Constantinopla ou de Roma. Os impérios têm os seus momentos de expansão, de auge e de queda. O Ocidente está em decadência. Isso é evidente. Mas é bom que assim seja para nos estimular e permitir a renovação. É natural que - tendo m conta esta Europa que esqueceu três mil anos de cultura, que está caduca, acabada, sem vontade de lutar, cheia de ministros contemporizadores que tentam agradar a todos e de cidadãos que querem apenas o conforto - cheguem os novos bárbaros. Eles vão ganhar. Sáo jovens e nós estamos velhos.
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O seu último livro [...] afirma que se trata sobretudo da "desolação que se sente ao descobrir que o caos governa o mundo". O caos move-se de forma organizada?
Claro. O caos tem regras. Acreditamos que o terramoto de Lisboa, o desastre do Titanic, o 11 de Setembro, a guerra de Sarajevo ou o vírus da sida são apenas azares. Não é verdade. Existem regras cósmicas no universo. Quando o homem as viola e transgride é obrigado a pagar a factura. Por que razão Lisboa foi arrasada em 1755? Por que motivo o homem decidiu edificar cidades em zonas sísmicas? Sempre houve tsunamis, mas antes não se construía hotéis em cima das praias. [...]
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... tenho um prazer...
Mórbido?
Não. Tenho um prazer intelectual ao confirmar que a História segue uma pauta que se repete. Quem a conhece pode sobreviver e lidar melhor com a realidade [...]
Digo mórbido porque, enquanto desfruta do seu "prazer intelectual" morrem inocentes que iam a passar no momento em que explodiu um carro armadilhado.
Ninguém é inocente. Aquele que faz um navio embater num iceberg porque vai demasiado depressa não é inocente, é estúpido. Quem vai passar as férias para um hotel construído em cima da praia numa zona onde há tsunamis não é inocente, é estúpido. Quem edifica cidades como São Francisco ou Lisboa em zonas sísmicas não é inocente. Quem morre nas Torres Gémeas porque trabalha num edifício que apenas aguenta o fogo durante três horas mas leva cinco a ser evacuado não é inocente, é irresponsável. Inocentes são as crianças, os cães, os pássaros, os deficientes mentais. Aqueles que podem ler, estudar, consultar a internet e voltam a cometer os mesmos erros não são inocentes, são idiotas. É preciso pôr os nomes às coisas.
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Passei vinte anos a fazer reportagens de guerra e posso afirmar que por vezes nem sequer as crianças são inocentes. Essas linhas morais que o Ocidente traça com tanta facilidade assombram-me.
Mas ningém escolhe nascer num local...
É preciso entender que nem sempre há soluções para tudo. [...] O ser humano está destinado a viver num mundo perigoso, hostil, complicado e injusto. Devemos assumir tudo isso como parte do mundo e da natureza humana. Não podemos dizer que nunca nos avisaram, que não sabíamos que Hitler ia chacinar judeus, que não tínhamos consciência de que íamos matar pretos ao fazer de Angola uma colónia ou que foi uma surpresa Franco prender tanta gente. Se desconhecíamos tudo isso então somos culpados. [...]
Vale a pena lutar para mudar o estado das coisas?
Claro que sim. É aí que está a graça. O ser humano vive com uma pistola apontada à cabeça. O Universo aponta-nos essa pistola e faz-nos prisioneiros. Restam duas opções: esperar pelo tiro ou tentar ser livre, correr, escapar. Enquanto corremos somos livres. Seremos mortos de qualquer forma, mas temos quinze metros de liberdade. Durante esses quinze metros podemos ser valentes, dignos, decentes, honestos, amar, ser solidários. É isso que distingue os homens. Há aqueles que escolhem correr esses quinze metros e aqueles que não. [...]"